Um motivo de orgulho!

Publicado em 09/03/2007 00h:00min.

Senhora da vida: A história de Sônia, a médica que transformou os bancos de leite do DF em referência mundial.

 
 

Tem gente que nasceu para ser diferente. E na diferença deu sentido à própria existência. Tem gente que escolheu lutar por gente. Salvar vidas, literalmente. Ela, a dona dessa história, optou por esse caminho, quase sempre árduo, quase sempre sofrido, quase sempre angustiante. Mesmo assim,  ela buscou e busca o desafio. E o faz com simpática discrição, timidez, voz quieta e sorriso de quem gosta realmente do que faz. Mas não se enganem. Ela também sabe ser determinada e firme. Briga pelo que quer. Deseja a perfeição. E não tolera nem os próprios erros. A pediatra neonatal Sônia Salviano Lisboa, de 48 anos, é uma das principais referências do país quando o assunto é aleitamento materno. Falar em amamentação e não citá-la é pecado, desses mortais. Daqui a alguns anos, se alguém contar a história do Hospital Regional de Taguatinga (HRT) e deixá-la fora será crime. Um deslize imperdoável de falta de memória. E gratidão. Mas, para entender a história que essa médica escreveu e continua escrevendo, é preciso voltar no tempo. E chegar à zona rural do Crato, sertão do Ceará, divisa com Pernambuco. Foi ali que nasceu a quinta filha do agricultor Otacílio e da dona-de-casa Antônia. E ela veio ao mundo em casa, nas mãos de uma velha parteira. Chegou forte, com choro alto, farto. E mamou muito. Até os três anos, não desgrudou do peito da mãe. Perto dos cinco anos, hora de morar na cidade grande. Os irmãos mais velhos já estavam no Crato, na escola. O pai, homem de mãos calejadas e sabedoria de vida, dizia: “Não tenho nada para deixar pra vocês, a não ser o estudo”. E lá se foi a menina. Ali, fez o primário, o ginásio e o científico. No último ano do segundo grau, mudou-se para Recife. Era a preparação para o vestibular. E uma coisa já estava bem clara: queria ser médica. Foi aprovada no primeiro vestibular da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Cada ano, extasiava-se mais com as descobertas. E só ratificava a vontade e ser médica. Certa vez, viu uma coleta de sangue de um bebê. Ficou chocada. E jurou que jamais faria pediatria. Mais: iria ser ginecologista e obstetra. No sexto ano da faculdade, chamado de internato, Sônia mudou-se para Brasília. Aqui, dividia o aprendizado entre o Hospital Universitário de Brasília (HUB) e o Hospital Santa Lúcia. No internato, um pediatra começou a lhe falar sobre aleitamento, importância da amamentação. Foi como se voltasse ao Crato, onde as mulheres amamentavam os filhos, lembra. Naquele momento, Sônia decidiu: faria todo o estágio apenas na pediatra. E veio a formatura. A quinta filha de Otacílio formou-se em medicina. Virou médica. A residência, de dois anos, feita em Brasília, aperfeiçoou-a em pediatria neonatal, que cuida de bebês prematuros, com alto de risco de morte.

Amor ao próximo. Era um caminho sem volta. E o Hospital Regional do Gama (HRG), no início dos anos 1980, foi sua primeira parada. Lá, logo tornou-se chefe da Unidade de Pediatria. Em março de 1987, criou, para as funcionárias com 'bebês menores de seis meses, uma sala de aleitamento materno. “Foi uma experiência tão interessante, que até as pediatras levavam seus filhos para os plantões”, conta Sônia. Ela mesma, na fase de amamentação das filhas, as estudantes de arquitetura Bárbara, hoje com 21 anos, e de engenheira elétrica Bianca, 20, carregava as meninas para o trabalho. A salinha de amamentação se tornaria, anos depois, o banco de leite do HRG. Era o primeiro bem-sucedido desafio daquela jovem médica que queria mudar o mundo.

Mas era apenas o começo. Tempos depois, a pediatra foi transferida para o HRT. Começaria aqui a sua mais apaixonante história de dedicação e amor ao próximo. Ali, foi direto para a Unidade de Neonatologia do hospital. E deu os primeiros passos do trabalho de aleitamento junto às mães. 

Em 1993, o primeiro grande reconhecimento público. O HRT ganhou o título de Hospital Amigo da Criança do DF, conferido pelo Fundo das Naões Unidas para a  Infância (Unicef) e o Ministério da Saúde. No ano seguinte, Sônia passou a ser a coordenadora do banco de leite da instituião. E os trabalhos não mais pararam. Vieram as campanhas, a coleta, o ensinamento mãe a mãe. “Fico triste quando vejo uma mãe, orientada, com capacidade para amamentar, e não o faz”, incomoda-se. O banco de leite humano do HRT virou pólo de treinamento das redes brasileiras e latino-americana. Profissionais de outros estados e países vieram a Taguatinga para aprender como se capacita, se colhe e se armazena leite com qualidade e segurança. 

Em 1998, Sônia coordenou o Primeiro Congresso Brasileiro de Banco de Leite Humano, em 'Brasília. Daí, nasceu o primeiro documento de Política Pública Nacional sobre Aleitamento Materno. “Em 1998, havia 100 bancos de leite em todo o Brasil”, comemora a médica. Pela luta e desempenho diante da causa, de 2003 a 2005, a pediatra exerceu o cargo de coordenadora de Política Nacional de Leite Materno do Ministério da Saúde. “Temos a melhor e mais avançada legislação de banco de leite materno do mundo”, observa. 

E o hospital? Depois de passar o dia inteiro no ministério, corria para a UTI neonatal, para mais um plantão de 12 horas. Tinha que ajudar bebês a viver. “Peguei prematuros com 600 gramas”, recorda. Respeito afetuoso. 

Manhã de quarta-feira. Na sala modesta do HRT, decorada apenas com uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, Sônia recebeu a equipe do Correio. Ela agora acumula, também, o cargo de vice-diretora do hospital. A impressão, logo no início da conversa, é de que se está diante de uma conhecida. Ela deixa todos à vontade. A fala é simples, o jeito de conversar não lembra médico. Sônia ouve o que as pessoas dizem. Importa-se com o que sentem. Sempre foi assim, atestam os colegas de profissão. E por isso, apenas com atenção, ela conquistou a admiração de toda a equipe, gente comquem convive há quase duas décadas. “Ela é humana e prestativa”, define a técnica de enfermagem Edilene Jesus Souza, 40. Ana Maria Freitas, 48, continua: “É uma profissional exigente, mas competente. Sabe cobrar”. A pediatra Patrícia Faria, 49, amiga desde os tempos de residência, ressalta: “É uma líder, uma danada. Há quem a chame de brava. Eu a chamo de justa”. A 'auxiliar Josefa de Lima, 52, a Zefinha, emociona-se: “Demos muitos plantões juntas. É a pessoa mais dedicada ao trabalho que já conheci na vida”. A faxineira Antônia Pinheiro, 51, mareja os olhos, tamanha emoção ao falar de Sônia: “Ela está sempre disposta a ajudar quem precisa. É uma vencedora”. 

E o marido, Francisco Salatiel de Alencar Barbosa, 65, servidor público aposentado, o que diz da mulher, companheira de 25 anos (em julho comemoram bodas de prata)? Talvez seja ele mesmo o mais apaixonado por essa mulher. Não foi à toa que deixou a batina para se casar com ela. Sim, Salatiel era padre, daqueles que celebravam missa, que o povo pedia bênção na rua e contava os pecados. “Ele era vigário da paróquia, no Crato. Começamos a namorar escondido. Eu tinha 17 anos”, lembra ela. E brinca: “Eu não fui a causadora da saída dele, não”. Apaixonado, o padre largou o celibato. Vieram mais cinco anos de namoro. E o casamento. A faculdade de medicina, a vinda para Brasília, a descoberta real da profissão, o trabalho incessante, o nascimento das duas filhas, o leite farto jorrando dos seios das mães, a vida para quem estava condenado a morrer. O começo de tudo. Sônia é uma mulher estupenda. Daquelas que vale a pena conhecer. E ouvir a bela história que tem para contar.