Publicado em 21/12/2018 14h:25min.
RIO- Com um dos seios à mostra, Maria — a mãe de Jesus — vai aparecer no presépio, em tamanho natural, montado no Largo da Glória, na Zona Sul do Rio, em frente à saída da estação do metrô. A peça, confeccionada pelo padre Wanderson José Guedes, só será exibida à meia-noite do dia 24, em substituição à imagem de Maria grávida sobre o burrinho, que integra a representação inaugurada no último dia 9 pelo arcebispo Dom Orani Tempesta.
A ousadia é um alerta sobre os constrangimentos sofridos por mães ao amamentar em locais públicos. A Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, responsável pela obra, sabe que pode enfrentar críticas. No ano passado, o presépio, que abordava a corrupção, foi depredado.
— O que me motivou foi a preocupação de parte das mães que não amamentam seus filhos por questões estéticas. E o crescente moralismo de alguns tradicionalistas que acham que amamentar em lugar público é uma indecência — explica o pároco Wanderson José Guedes.
Preocupam o religioso reportagens e posts que relatam confusões envolvendo mães durante a amamentação. Em julho, guardas municipais acusaram uma mulher de “atentado violento ao pudor” por amamentar seu filho em um terminal rodoviário, em Santo André, na Grande São Paulo.
— Algumas mães sentem, por parte dos outros, um certo tabu em amamentar publicamente seus filhos — lamenta.
A consultora em amamentação Clarissa Oliveira diz acreditar que o preconceito contra a amamentação na rua esteja se tornando mais corriqueiro, especialmente conforme a criança cresce:
— Apesar dos esforços de valorizar a amamentação, parece que cada vez mais as mulheres se sentem pressionadas, seja por ofensas diretas ou só por olhares indiscretos e comentários para não exporem os seios, cobrindo com paninhos ou se escondendo para amamentar. Os relatos de constrangimento são quase diários nos grupos de promoção do aleitamento materno.
A mensagem sobre a amamentação, porém, só ficará evidente na virada do Natal. Como reza a tradição, o menino Jesus deve ser colocado, ao lado da mãe, na manjedoura.
— O tema deste ano só será explícito na segunda-feira, dia 24, quando as pessoas virem a imagem de Maria amamentando — diz Wanderson.
O pároco afirma temer que grupos mais radicais possam tentar destruir o presépio, como aconteceu no ano passado.
— Espero críticas por ser uma imagem polêmica e por uma certa onda conservadora que se abateu com força dentro da Igreja. Muitos padres e movimentos leigos querem uma Igreja segundo o Concílio de Trento. Uma Igreja principesca, com muito moralismo e preconceitos. Acredito que essa ala mais tradicional irá bradar e me chamar de herético e tantos outros adjetivos do gênero. Com certeza me condenarão ao inferno — observa o religioso, com bom humor.
A escultura de Maria com o seio esquerdo à mostra está guardada no ateliê do padre Wanderson, em um sobrado na área do Santuário. Na representação criada pelo religioso, Maria está sentada com o menino no colo.
— A função do presépio não só é um meio de evangelizar pela arte, mas também de contextualizar o nascimento de Jesus nos dias atuais. Jesus vem salvar o ser humano dentro de sua realidade cultural e temporal — observa.
O presépio em tamanho natural do Largo da Glória passou a adotar temas no ano passado. A palavra corrupção foi colocada no ponto mais alto da alegoria no último Natal.
— O presépio ficou incólume até o Natal, mas no período entre o Natal e o Dia de Reis (em 6 de janeiro), que é quando a gente desmonta o presépio, ele foi agredido. Um grupo quebrou algumas estátuas e o cenário. Só não quebrou mais porque a gente contou com o apoio dos moradores de rua que ficam no Largo da Glória e gostam do presépio — diz Maurício Rodrigues dos Santos, membro da Pastoral da Comunicação da Igreja do Sagrado Coração.
Por conta do ataque, o presépio deste ano é a metade do apresentado no último Natal. A representação atual possui em torno de 40 peças. Os custos foram reduzidos por terem sido aproveitadas as estruturas do ano anterior.
Por trás dos presépios temáticos da Glória está o padre Wanderson José Guedes, de 52 anos. Ele é o responsável pela montagem da representação e pela elaboração dos 40 personagens em tamanho natural. O religioso, porém, é mais conhecido pela timidez do que por suas obras. Nas inaugurações dos presépios, costuma ficar de longe, sem dar entrevista.
Wanderson assumiu há 13 anos a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, no bairro onde estão expostas as esculturas. Como é restaurador de obras de arte do barroco mineiro, ele se uniu à comunidade para uma série de intervenções nas dependências da igreja. Paredes ganharam tijolos aparentes envernizados, o piso recebeu resina, e esculturas de anjos e santos se espalharam pelo templo limpo e bem cuidado. O presépio do santuário era exibido apenas internamente.
— Isso evoluiu de tal forma que o arcebispo Dom Orani Tempesta pediu que ele (o padre) levasse o presépio para a praça. Há cinco anos a gente vem montando a representação no Largo da Glória — conta Maurício Rodrigues dos Santos, membro da Pastoral da Comunicação da paróquia.
O padre, porém, diz não se considerar um artista plástico.
— Nunca frequentei uma escola de arte. Apenas tento exercitar um dom que me foi dado por Deus. Não sou acadêmico das belas artes. Sou autodidata.
Mineiro de Caeté, na região metropolitana de Belo Horizonte, Wanderson formou-se em Filosofia e Teologia e foi ordenado pela Arquidiocese do Rio. Passou por paróquias em Belo Horizonte e no Rio, onde já atuou como seminarista na Paróquia da Ressurreição (Copacabana) e Nossa Senhora da Conceição (Botafogo) e foi diácono na Igreja da Candelária e na Paróquia do Perpétuo Socorro (Grajaú). Como padre, esteve nas paróquias de Nossa Senhora das Graças (Realengo), Nossa Senhora dos Navegantes (Bangu) e Nossa Senhora da Boa Esperança (Honório Gurgel).
Fonte: oglobo.globo.com