Amamentação é considerada a melhor vacina para uma criança, mas por que é tão difícil para as mães? E o que podemos fazer para melhorar?

Publicado em 19/06/2019 16h:32min.

Para cada mãe no mundo, há sempre um cartaz de incentivo à amamentação: a mulher com um sorriso calmo carrega no colo o seu filho que, tranquilamente, se alimenta no peito. Na imagem não tem sangue, mastite, choro infinito, não tem a cara de dor ou a mãe fatigada com a sensação de falha na primeira missão depois de gerar uma vida: alimentar seu bebê.

O cartaz passa a ideia de que essa é uma escolha da mãe. “Você vai dar o peito ou não vai?”, perguntam os amigos. No entanto, a propaganda tamb ém não mostra as leis precárias de licença maternidade ou a probabilidade de demissão após retornarem ao trabalho; a solidão dos espaços reservados para lactação ou a falta deles em ambientes corporativos; os olhares atravessados aos seios descobertos ou a falta de suporte em vários níveis para que o tempo de amamentação indicado pela Organização Mundial de Saúde seja uma possibilidade. Por trás dos seis meses de amamentação exclusiva e dois anos de aleitamento parciais, como indicado, existem mães também exclusivas que não se reconhecem naqueles cartazes.

Amamentação não é uma escolha. É um desafio diante de um mundo que não foi desenhado para mulheres serem ativas socialmente. “O bebê é o doce e a mãe é apenas o embrulho. A sociedade não liga se a mãe está com dores ou sofrendo”, lamenta a consultora de amamentação californiana Katie Howser.

E por que isso é importante? Porque “ se a amamentação não existisse, alguém que a inventasse hoje mereceria um duplo prêmio Nobel de medicina e economia ”, diz Keith Hansen do World Bank no The Lancet .

Amamentação é um privilégio. O mundo ainda tem um longo caminho pela frente quando se trata de maternidade e isso inclui você, leitor(a), os Estados Unidos, a indústria de comidas infantis, um projeto bem sucedido no Brasil e estatísticas surpreendentes ao redor do planeta.

Desde 1991 que a iniciativa “Hospital Amigo da Criança” foi lançada pelo UNICEF e a OMS com a intenção de transformar instituições de saúde em centros de apoio à amamentação. Para ter o selo, o hospital deve seguir alguns acordos, como não oferecer sacolas de fórmula às mães, eliminar as enfermarias (os quartos onde os bebês são colocados depois do parto) para que mãe e cria fiquem juntos desde o primeiro momento; apoiar mães a reconhecerem os sinais naturais de fome da criança e aconselhar às famílias sobre os riscos de substitutos de leite materno.

A organização inglesa Baby Milk Action faz parte da IBFAN ( International Baby Food Action Network) , uma rede de organizações que acompanha a atuação dos governos e das empresas quanto à efetivação da política de proteção do aleitamento materno . Ela se baseia no Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, criado em 1981, que apresenta uma série de boas práticas para empresas de alimentos para bebês.

Patti Rundall (Baby Milk Action) deixa claro que o código não bane a fórmula. “Não colocamos nenhuma obrigação às mulheres, mas queremos que seja uma obrigação dos países remover os obstáculos para elas. Mães precisam ter acesso às informações precisas. Quando se dizem idênticos ao leite humano, é mentira e manipulação”, explica.

“Na época da criação, houve três abstenções, mas os Estados Unidos foram o único país que votou contra o código. Por não ter um consenso, o código se tornou uma recomendação e não uma obrigação – porque é assim que a Organização Mundial de Saúde funciona”, explica Patti Rundall. “Nós vimos, nesse novo governo americano, quase imediatamente as coisas ficarem mais difíceis. Os Estados Unidos simplesmente não acreditam em regulamentações”, acrescenta, se referindo ao imbróglio em Genebra de 2018.

O Brasil foi um dos primeiros países a aceitar o tratado na época de sua criação, que comemora 30 anos em 2019. O precursor desse feito foi o professor e médico Fernando Figueiras, que fundou o IMIP (o primeiro hospital Amigo da Criança do Brasil). “Em 1974, Figueiras, então secretário de saúde, se encantou com o livro The Baby Killer (que falava do perigo das fórmulas infantis). Influenciado por todas as causas da mortalidade infantil no estado, ele publicou a primeira portaria oficial no mundo inteiro proibindo a distribuição de latas de leite, bicos, chupetas e mamadeiras em todas as maternidades públicas de Pernambuco. Isso tudo muito antes do primeiro código internacional de ética de substitutos do leite humano, que veio para dar base à norma de regulamentação de alimentos infantis no Brasil”, lembra a coordenadora do Banco de Leite do IMIP, Vilneide Braga.

“Nós temos o maior orgulho de um brasileiro ter feito essa ação incrível. É uma história que reflete no funcionamento dos nossos bancos de leite que tem hoje como principal objetivo dar assistência às mães lactentes com problemas na amamentação e promover com segurança e eficiência o armazenamento e distribuição do leite humano”, completa.

Um caso de referência no mundo. O país tem a maior e mais complexa rede de Bancos de Leite Humano do planeta, contando com mais de 220 postos de assistência e coleta, e maior número de doadoras. Entre janeiro e 15 de junho deste ano, já foram mais de 70 mil mulheres que doaram mais 65 mil litros de leite distribuídos para mais de 80 mil recém-nascidos.

A Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (RBLH-BR) foi estabelecida em 1998 por iniciativa do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz. Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a RBLH-BR como uma das ações que mais contribuíram para redução da mortalidade infantil no mundo na década de 1990. De 1990 a 2012, a taxa de mortalidade infantil no Brasil reduziu 70,5%.

“Foi uma conquista do SUS em 1985, uma tecnologia brasileira, de baixo custo na coleta e distribuição do leite materno, e reconhecida pela Organização Mundial de Saúde pela sua segurança e eficiência em todo processo”, conta o coordenador da Rede Global de Bancos de Leite Humano e Secretário Executivo do Programa Ibero-americano de Bancos de Leite Humano, João Aprígio Guerra de Almeida.

“A amamentação é algo que tem sido socioculturalmente condicionada ao mamífero humano. Ou seja, se sobrepõe aos fatores biológicos. Por isso devemos ter cuidado para não nos tornarmos um mamífero facultativo, onde acontece a troca das leis biológicas pelas leis do mercado. A amamentação não deve ser apenas tratada como uma preocupação exclusiva do setor da saúde, mas sim, como cidadania”, ressalta.

 

Fonte:

Por Beatriz Braga e Mariana Barros, especial para o site Marco Zero

Marco Zero Conteúdo é um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.

Assista a matéria na íntegra: http://marcozero.org/entre-o-peito-e-a-mamadeira/